Quando eu me ofereci para escrever para o Social Rock Club, eu mostrei ao Marcelo um conto que eu escrevi e que tinha sido inspirado numa música dos Stones. A ideia inicial que nós tivemos era que eu escrevesse contos pequenos, todos baseados em músicas, que tivessem alguma coisa a ver com rock’n’roll, só que no meio do caminho eu acabei encarnando o espírito do Telecurso 2000 e meus posts ganharam um ar, digamos, um pouco didático (para não dizer com overdoses de nerdice).
Essa semana eu resolvi voltar à ideia original e escrevi um conto baseado numa música do Elliott Smith.
Pra quem não sabe, Elliott Smith era um cantor de folk-rock e é considerado um dos melhores letristas de sua geração. Durante anos ele lutou contra a depressão, o alcoolismo e o vício em drogas, temas que aparecem em várias de suas músicas. Em 1997 ele concorreu ao Oscar de melhor canção com “Miss Misery” do filme “O Gênio Indomável”, e apesar de perder para a melosa “My Heart Will Go On” da Celine Dion a indicação fez com que ele saisse do anonimato e assinasse contrato com uma grande gravadora. Em 21 de outubro de 2003, ele foi encontrado por sua namorada em seu apartamento com duas facadas no peito, a morte foi registrada como suicídio, porém a necropsia deixou em aberto a opção de um homicídio. Além da polêmica sobre sua morte, Elliott Smith deixou um álbum inacabado (From A Basement on the Hill, que foi lançado postumamente em 2004) e um legado de canções que com palavras simples retratavam o que há de mais complexo: a essência do ser humano.
Segue abaixo a música que me inspirou a escrever e o conto. Espero que gostem (mas caso contrário, os comentários também servem para as críticas).
A ressaca de segunda-feira
Há quanto tempo ele estava ali? Horas? Dias? Eras? Uma existência inteira? Talvez um pouco menos que isso. Suas mãos estavam incrustadas nos braços daquela poltrona, e havia a suspeita de que suas costas jamais se descolariam do estofado do encosto. Ele não era mais um homem, era simplesmente parte daquela sala.
Vez ou outra vinha um espasmo, como se mãos invisíveis espremessem seu cérebro para lembrá-lo dos abusos cometidos no dia anterior. Entre um espasmo e outro ele concentrava toda a sua atenção em uma mancha escura que se destacava no chão claro.
Vão-se as pessoas, ficam as manchas de cerveja, contrastando com a cor do piso, grudando na madeira dos móveis.
Você enche sua casa de gente quando na verdade tudo o que você queria é que apenas uma pessoa estivesse ali, uma única pessoa que não está entre aqueles que você convocou para preencher o vazio. O som alto é uma tentativa de abafas todas as palavras não ditas. Álcool serve para aplacar a dor que você só sente na sua cabeça. E funciona por um tempo, como se certos momentos tivessem uma lógica própria e exclusiva, enquanto você os vive tudo faz sentido, mas depois... É como se as informações estivessem desconexas, e as explicações e justificativas que você se dá parecem não ter serventia nenhuma. A sensação é a de que aquilo que você viveu não é parte da sua vida, só algo que aconteceu com um estranho e alguém te contou.
Então sobre a ressaca, a baderna que foi deixada pra trás, o cheiro de vômito vindo da pia da cozinha e aquela mancha no chão.
Ele compreendia agora, ele existia junto com aquela mancha. Quando limpassem aquela mancha do chão sua existência seria apagada junto com a sujeira.
Um barulho chamou sua atenção, ele desviou os olhos do chão e se deparou com um homem parado no meio da sala e olhando em volta com uma expressão de desgosto. Demorou alguns segundos para ele reconhecer no homem ostentando a cara feia uma versão de si mesmo, uma versão limpa e sóbria, que provavelmente tinha recorrido a algum analgésico e a algum outro remédio para arrumar o estrago que a bebedeira tinha feito ao seu estômago, uma versão que não gostava do que via, que tinha se forçado a se levantar e seguir andando, alguém capaz de deixar aquela sala.
Sua versão sóbria se aproximou da poltrona onde agora ele habitava, olhou para a mancha no chão e resmungou em desaprovação. Ele sabia o que aquilo significava: no final do dia sua versão sóbria voltaria para casa e limparia aquela mancha, o que por sua vez significava que ele tinha menos de um dia para continuar existindo.
Ele observou sua outra versão ir até a mesa, pegar o relógio e prende-lo no pulso. Sua versão sóbria se importava com o tempo, coisa que para ele já não fazia mais diferença alguma. Em seguida sua versão limpa e funcional levou seu relógio de pulso até a porta da frente, olhou uma última vez com desgosto para o caos que era aquela sala de estar e saiu.
O som da porta batendo reverberou dentro de sua cabeça. Quando a reverberação se dissipou e a tortura teve fim, ele fez a única coisa que o estado em que se encontrava lhe permitia fazer: voltou a encarar aquela mancha no chão, aquela mancha que também era sua existência.
Roberta Grassi @robertagrassi
http://esquizofreniacoletiva.blogspot.com
CARALHO... qdo vc escreve esses contos é muito foda...
ResponderExcluirvc encarna o personagem, eu não consigo encarnar um personagem nessa siituação q vc cooca, isso vc faz realmente c/ uma maestria fora do comum, já até te falei como tenho q pensar qdo escrevo algo assim...
muito foda ro!!!!!
Arrepiei!!! Gosto muito de ler, e esse estilo é um dos meus preferidos, espero ler mais desses contos por aqui Roberta. A propósito, arrasou.
ResponderExcluirRoberta, podia desenvolver um livro com esse argumento. Dá pra encarar esse como um primeiro capítulo. De qualquer maneira, gostei. Beijo!
ResponderExcluirMarco Antonio Martire
@MarcoAMartire
http://obloguidomarco.blogspot.com/